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A Roda do tempo

Durante o auge da pandemia, a Roda do tempo, série de livros do autor Robert Jordan, foi a minha maior distração.

Eu li todos os volumes, fiz releituras, e me joguei no dia a dia da adaptação, que está sendo produzida da Amazon Prime. Foi uma experiencia que marcou a minha vida como leitora.

E, ao contrario de muita gente por aí, eu gostei muitissimo da primeira temporada de “A Roda do Tempo”, que chegou nas telinhas no fim de 2021, no Prime Video. As opiniões entre o fandom são bem polarizadoras, mas eu sou do time que achou que a série de TV serve um ótimo complemento e/ou aprimoramento dos livros. No meio de tanta gente tratando a adaptação como decepção, como uma distorção do material original, eu sou a exceção.

Mas como, Luana? Você não gosta dos livros?

Sim, adoro os livros, mas sei bem dos problemas deles.

Bom, vamos começar do começo então? Vou te contar sobre os livros, minha opinião critica sobre os problemas que enxergo neles e o que a série trouxe de diferente para a minha experiência de leitura.

Livros

crédito: @juniperbooks

A Roda do tempo é uma serie de 14 livros e 1 prequela escritos por Robert Jordan e Brandon Sanderson. Jordan, formado em Fisica e engenheiro nuclear na Marinha americana, era veterano da Guerra do Vietnã, uma experiencia que mudou sua percepção de mundo e inspirou diretamente muitas das suas histórias. Quando começou a trabalhar em “A Roda do Tempo”, tinha como desejo uma fantasia épica que subvertesse muitos preconceitos e mesmices dos livros lançados nas décadas de 1980 e de 1990.

A temática central da série é a luta do bem contra o mal : em um futuro distante, o nosso universo, depois de ter alcançado o ápice do desenvolvimento tecnologico e encontrado a magia, foi destruído no confronto da luz x escuridão. Esse Universo, representado pela simbologia da Roda, continua sofrendo com as consequências desse confronto e vê-se ameaçado novamente com o fortalecimento das forças do mal. Para conter a escuridão, o Dragão Renascido, figura das profecias, é esperado para unir ou destruir os povos. Será que o Dragão já está entre nós?

O primeiro volume da série, ” O olho do mundo” (1990) é a introdução desse universo, estruturado à moda de Tolkien, porque era o formato que mais vendia no periodo de lançamento. Depois do sucesso do primeiro volume, Robert Jordan conseguiu encontrar seu estilo e voz, entregando uma narrativa rica, com personagens de todos os tipos, origens e cores, e repleto de temas importantes.

Sim, a gente tem tudo nessa série – há uma mitologia/metáfisica bem inovadora, mesclada com lendas e filosofias inspirada no nosso mundo real; temos o confito bem x mal com várias nuances e jogadores, temos intrigas politicas e a preparação para uma batalha épica que vai deixar muita gente de boca aberta. É um universo complexo e delicado, como nunca se havia lido antes nos Estados Unidos.

A cada volume lançado o sucesso aumentou, mas, infelizmente, Robert Jordan ficou gravemente doente, e precisou organizar suas notas e rascunhos para que alguém pudesse completar a história depois de sua morte. O autor escolhido foi Brandon Sanderson, que para fechar a saga, produziu 3 livros.

O conjunto de livros possui muitas qualidades e um potencial incrível pra ser favorito nas estantes dos fãs de fantasia mais tradicional . No entanto, o esforço e a promessa de Jordan em trazer novas perspectivas e direções nem sempre alcançou o resultado esperado. Eu sou uma pesssoa que gosta muitíssimo de A Roda do Tempo, mas sou realista e bem ciente das falhas e erros do material escrito. Algumas dessas deficiências tem relação com o contexto histórico e social em que o livro foi produzido, outras são questões mais técnicas, como estilo e edição.

As questões que mais me incomodaram na leitura são as seguintes:

Nada de novo no front

Robert Jordan promete , desde o inicio, surpreender o leitor com suas novas perspectivas em fantasia. Sua ideia era ser um ponte entre o estilo mais clássico e o moderno para os leitores. E, claro, pensar uma obra que transiciona ente o classico e o moderno não é tarefa simples. Eu considero que nesse quesito inovação é onde que o autor acaba engasgando em muitos momentos. Acredito que uma multiplicidade de fatores entra aqui : o estilo pessoal do autor, o periodo em que a obra foi escrita, e as escolhas editoriais.

A tentativa de diversificação dos temas é aparente, mas é limitada pela perspectiva de um homem branco de classe média. O autor tenta introduzir, por exemplo, um relacionamento poliamor entre protagonistas, mas acaba pintando-o com cores da poligamia; a nova abordagem do jogo politico intitulado “Jogo das Casas” é muito interessante, mas pouco explorado, e acabou virando o carro chefe de George RR Martin em Game of Thrones .

É possível perceber que Robert Jordan foi ambicioso em adicionar todas as linhas possiveis e imagínaveis dentro nesse universo, mas sem uma edição enérgica/rigorosa a ponto de cortar o excesso de temas e personagens, ficou difícil . Logo, digo que as promessas de inovação dos livros são boas, e a maior parte fica só na hipótese mesmo, esquecidas ao longo da saga. Isso não faz a série ser ruim, ela é somente “mais do mesmo” em muitos momentos.

Nota 10 pelo empenho, nota 06 pela execução.

Sexismo
@thewheeloftime official X account

Por toda e extensão dos livros de “A Roda do tempo”, existe, na minha opinião, um olhar sexista , um desequilíbrio na perspectiva feminina que é constante e que me incomoda bastante. Pensando em um livro que é cheio de simbolismo e preza pelo equilibrio de forças, isso é um tanto preocupante.

Tem explicação? Sim. Acredito que essa questão tem a ver com as perspectivas pessoais do autor, um homem branco de meia idade e religioso, e também um pouco com o período em que foi escrito – majoritariamente na década de 1990.


Não se pode negar que Jordan ganha muitos pontos na minha lista por ter tantas protagonistas e personagens de destaque femininas, mas novamente digo que o desenvolvimento do material não foi a contento. Existe uma objetificação do corpo feminino muito clara, em que as mulheres são constantemente notadas pelo tamanho do seu decote. Temos também certa repetição de temas como imaturidade, teimosia, e competição feminina, que vão se acumulando, tornando-se clichês ao longo da narrativa. E esses defeitos não afetam somente as personagens jovens, mas também as mais velhas. Obviamente isso também reflete nos relacionamentos amorosos presentes aolongoda trama, que são em sua esmagadora maioria abruptos,um tanto imaturos e pouco desenvolvidos. O amor não era o forte de Robert Jordan .

Até na propria metafísica do universo criado por Jordan podemos apontar um certo desprezo pela presença feminina. Cito dois exemplos: a questão de que o salvador do mundo, O Dragão, só pode ser um homem , e que as 2 protagonistas principais da série não podem ser consideradas “Ta’veren”, ( termo que caracteriza pessoas especiais no tecido da Roda do Tempo), enquanto os rapazes do mesmo grupo original assim o são. Há um divisão de gêneros e de papeis que é antiquada e vai de encontro a certas iniciativas de Jordan, tanto no espaço da mulher, quanto na representação LGBTQIAP+

Grandes demais, oscilantes também?

crédito : /r/WoT subreddit.

O sucesso inicial do material permitiu que Robert Jordan continuasse a desenvolver esse universo imenso e intrincado sem muitas rédeas. O projeto extremamente ambicioso e cheio de potencial , no fim, acabou extrapolando os limites. A Roda do Tempo possui um desequilibro de arcos e histórias que é admitido por muitos e capaz, inclusive, de afastar muitos leitores do termino da saga, e me incluo nesse grupo.

Sim, eu cheguei a um ponto na leitura em que foi preciso dar um passo atrás pra poder não abandonar a série de vez. E como eu já havia lido cerca de 8 ou 9 volumes quando esse isso aconteceu, dar um tempo na leitura foi mais saudável que desistir. Ali ficou claro para mim que os livros tinham sim um desnível relevante no desenvolvimento, e um numero grande de arcos e personagens paralelos que impedia a real inovação prometida pelo autor. Um das maiores inconcistências que percebi, a essa altura foi o desenvolvimento dos antagonistas aliados às forças do mal, chamados de “Os Abandonados”. Sem dar spoilers, digo somente que são antagonistas por vezes muito clichês, que não conseguem sequer se organizar para trabalhar em conjunto.

Muitos consideram o autor o mestre da verborragia , quando, por exemplo, passamos uma duzia de paginas com um determinado personagem, pra nunca mais voltarmos a vê-lo nos livros. Esse vigor criativo de Robert Jordan tornou-se uma marca , mas também um pesadelo para a fluidez da história. Contudo, Robert Jordan, é mestre nos Easter Eggs ( ou seja, em esconder segredos nas entrelinhas), logo, páginas e páginas de descrições de vestuário, ou de formatos de folhas das árvores podem esconder segredos da história que só farão sentido milhares de paginas à frente.

Juntando tudo isso com a já mencionada edição frouxa, temos livros enormes e alguns volumes que podem ser considerados como enchimento, ou seja, livros que não tem linha narrativa definida, ou sem grandes desenvolvimentos da trama principal. No mercado de hoje, esse ritmo descompassado seria considerado uma falha editorial mortal.

E claro, todo fã de A Roda do Tempo sabe ou já ouviu falar sobre o slog“, ou seja, do esforço hercúleo que é navegar por cerca de 4 livros (começando lá por volta do livro 7 , indo até 10 /11, para muitos) cujo ritmo é lento e o desenvolvimento um tanto insatisfatório. Esses livros são sim um declínio na história, mas não são de todo ruins, só muito fora de compasso, se comparados a volumes anteriores.

Depois que você alcança o livro 12, ainda há mais uma ruptura no ritmo e tom da história, com a transição para os livros escritos por Brandon Sanderson. Esses volumes tem um andamento bem mais acelerado e um estilo levemente distinto da obra original que eu curti, bastante, mas muitos dos fãs raiz tendem a torcer o nariz.

The Wheel of Time , no Amazon Prime Video

Por tudo isso, a adaptação da serie já começa com uma tarefa difícil : como conciliar o material contido nos livros com a inovação necessária para corrigir os erros e atrair novos leitores?

É impossivel acomodar as mais de 12 mil páginas dos livros no formato audiovisual com temporadas de 8 episodios, conforme imposto pela Amazon. É uma adaptação, uma releitura da obra original, o que significa que teremos milhares de personagens que não serão vistos, e várias histórias paralelas que não chegarão às telinhas. O escopo do universo é muito grande, e requer muitos recursos e tecnologia para que haja uma representação justa da história. Os fãs dos livros saem em sim em desvantagem, mas cabe lembrar que a adaptação audiovisual nunca tem tem mente somente o público cativo, mas sim a prospeção de novas audiencias .

Se pensarmos em Game of Thrones, por exemplo, o público que não conhecia ou não tinha lido os livros era majoritariamente maior na primeira temporada, segundo as estatisticas. E, ainda que o número de leitores tenha aumentando conforme as temporadas avançaram, a maior parte da audiencia continuou sendo a de não leitores. Podem haver pontos de interseção, mas são publicos distintos, em sua maior parte.

Minha opinião ( sem spoilers !)

Crédito : IMDB

A primeira temporada de A Roda do Tempo definitivamente não é uma temporada feita para os fãs dos livros, embora se tenha muitos acenos especiais que só os leitores vão sacar de primeira. Também achei para estabelecer as premissas e temas principais dos livros, seria preciso bem mais de 08 episodios. Mas, em linhas gerais, considero que primeira temporada foi muito eficiente para que criemos um vinculo com os personagens mais relevantes, que entendamos as linhas principais da historia e para aguçar a curiosidade com o que virá.

E eu fiquei muitíssimo feliz em ver que os problemas que eu tenho com o texto original foram muito bem resolvidos nessa adaptação. O protagonismo feminino no show , por exemplo, é maduro, sem picuinhas juvenis, e sem qualquer detrimento a essencia dos personagens principais que conheci nos livros. Tanto que eu, que não sou fã da Nynaeve dos livros, gostei logo de cara de como ela foi trabalhada nessa nova versão, o que é resultado tanto do talento da atriz quando do bom refinamento do texto pelos roteiristas. Agora, consigo enxergar com clareza o que Robert Jordam tinha em mente quando me apresentou a essa personagem.

Zoe Robins como Nyneave – @thewheeloftime official X account

A presença LBGTQ+, que existia de maneira mais silenciosa e esparsa nas páginas dos livros, veio à tona e foi muito bem colocada , ganhando o espaço de tela que merece nos tempos de hoje. É uma linha que certamente vai atrair um publico ainda maior para esse universo, sedento por representatividade em fantasias épicas.

Outro ponto forte até o momento foi o estabelecimento e desenvolvimento das relações amorosas. Já comentei que Robert Jordan não sabia trabalhar sentimentos amorosos, e acabou deixando boa parte desse processo acontecendo à margem da narrativa principal. Imagina : de repente, você vira a pagina e descobre duas pessoas se gostando e pensa ” De onde foi que isso surgiu?” Na série, o que todos esperavam aconteceu : pudemos acompanhar um desses romances florescendo de forma madura e honesta, que ganhou os corações de muita gente. Foi uma aprimoramento e tanto se comparado com o que se passa nos livros.

A cenografia, o cuidado com o figurino, a qualidade de cinema embuida na produção são elementos que também chamam a atenção tanto dos fãs dos livros quanto das novas audiências, e que são reforçadas com os videos de bastidores ,disponiveis na plataforma da Amazon Prime Video. Junto a eles, temos ainda animações especiais que tratam da mitologia e metafisica do show, lançadas junto aos episodios, que enriquecem o entendimento. Esse material de apoio torna a experiencia ainda mais rica , e não deve ser descartado .

Os Mantos brancos em “A roda do Tempo ” – credito: Amazon Prime

Muitos fãs, como eu, estão abertos as mudanças e aprimoramento, debatendo erros e acertos da série de forma bem amigável nas redes, enquanto outros se apegam demais ao material original. É importante considerar o quanto dessa reticencia é genuinamente ligada aos livros, e o quanto é somente um reflexo da experiencia de vida e de leitura cada um. Vi muita gente arranjar briga e menosprezar o show porque queriam ver essa ou aquela cena favorita . Os livros estarão sempre ali quando se quiser revisita-las, mas para uma adaptação audiovisual, tempo e recursos são limitados, e forçam decisões mais racionais, ainda que um tanto amargas .

Esse conflito razão x emoção é o que tem causado muitos embates , mas os preconceitos disfarçados de rigidez literária ganharam muito espaço tmabém. Você sabia que muitos leitores foram incapazes de aceitar a diversidade do elenco mesmo quando essa diversidade, em parte, já existia nas paginas de Robert Jordan? Outro ponto grande de contestação foi quando se introduziu a possibilidade de pensarmos o Dragão como uma mulher por boa parte da primeira temporada. Muitos leitores não conseguiram enxergar que o aparente sexismo da obra não tem mais lugar nos dias de hoje, e que considerar uma mulher para o título de Dragão em nada mudaria a história de verdade, já que temos 14 livros estabelecidos com um dragão definido e bem trabalhado. No entanto, a simples menção levou fãs a desenterrar citações de Robert Jordan e provar como a metafisica dos livros impede essa hipótese.

A baboseira chegou a um nível em que diretor foi acusado até de desconstruir os papeis masculinos em favor do politicamente correto, de cair na agenda “woke”. Eu imploro, se encontrarem essa galera gritando esse tipo de coisa nas redes, fujam.

Estamos em 2022, gente, e a tolerância com esse tipo de discurso limitador é ZERO.

Então, como lidar com as diferenças entre livros e série?

É cliche, mas digo: relaxe e aproveite, sem julgamentos.

Se você é só mais um interessado em boa diversão e não conhece os livros ainda, acho que vai se surpreender com o que foi apresentado na série. O texto é interessante, o mix de distopia e fantasia é convidativo, o elenco é de qualidade, e essa primeira temporada tem grandes chances de fisgar você a ponto de você desejar conhecer mais a fundo tudo o que viu na telinha.

Se você é fã dos livros, peço que deixe suas expectativas de lado e lembre-se de que a série é um novo formato de apresentação de A Roda do Tempo para o mundo. A essencia da história está ali, acredite, mas a construção dessa nova realidade não precisa (e nem deve) seguir o desenho dos livros. Saiba que os atores representam muito bem seus personagens, e que essa primeira temporada é feita para captar novas audiencias , não para você. Isso não significa que você vai desgostar dos episódios, pelo contrário – como disse anteriormente, há easter eggs em todos os episodios especialmente para os fãs dos livros, e há também partes da história que nunca presenciamos nos livros e que são trazidas à vida nas telinhas com primor.

Essa primeira temporada é so uma introdução, e na minha opinião, Rafe Judkins entregou muito mais que o esperado. Não é a toa que o show fez um sucesso estrondoso, e ficou semanas no topo do ranking como a série mais assistida no mundo inteiro. O material adaptado é bom, entretém, e a qualidade visual é incrível. Não se esqueça : críticas são bem vindas, desde que respeitosas e embasadas, ok? Não seja um purista estilo Mantos brancos !

Ja falei demais – agora é a vez de vocês me contarem sobre o que acharam dessa primeira temporada de a Roda do Tempo ! Não viu ainda? Então aproveite 30 dias de Amazon Prime NA FAIXA , e tenha o Prime Video e muito mais serviços . É so clicar no banner abaixo e assinar o serviço. Se gostar dele, são só 9,90 por mês, super em conta !

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