Se tem uma leitura que mexeu comigo recentemente, foi “Entre o mundo e eu” , do autor norte-americano Ta-Nehesi Coates .
A premissa é simples : uma carta ao filho adolescente, discutindo o ethos do homem negro na sociedade norte-americana atual. Não é um livro que deixa muito espaço para romantização e esperança, porque seu objetivo é mais urgente. Coates precisa ensinar ao filho que os obstáculos diários são reais, e que o constante debate das relações raciais continuarão causando a marginalização da população negra por muitos anos ainda.
Ele é enfático em nos mostrar que não importa que se tenha nascido nas favelas, no subúrbio ou em condomínios chiques, uma pessoa negra vai ser sempre julgada por sua cor e viver à espreita, com medo, porque o governo não a considera importante. Ele não acredita em soluções facilitadas a longo prazo, e eu entendo a sua desilusão.
“É uma questão profunda, porque a América vê a si mesma como obra de Deus, mas o corpo negro é a evidencia mais clara de que a América é obra do homem. Fiz essa pergunta a partir do que lia e do que escrevia, a partir da musica da minha juventude, a partir dos debates com seu avô, sua mãe, sua tia Janai, seu tio Ben. Procurei respostas no mito nacionalista, nas salas de aula, nas ruas e em outros continentes. A pergunta é irrespondível, o que não vale dizer que a busca é inútil. A grande recompensa dessa constante interrogação, do confronto com a brutalidade de meu país, é ela que me libertou dos fantasmas e me equipou contra o puro terror da descorporificação.
E tenho medo. Sinto esse medo mais intensamente sempre que você me deixa. Mas já tinha muito medo antes de você nascer, e nisso não fui original. Quando tinha a sua idade, as únicas pessoas que conhecia eram negras, e todas estavam intensamente, inexoravelmente, perigosamente, com medo”.
Como viver em um mundo que fisicamente te rejeita , cuja ideia de “Sonho americano” não te inclui? Coates, nessa carta dura, sentida e muito honesta, deixa claro o medo que sente pelo futuro de seu filho, de como os problemas do passado continuam afetando o presente da população negra, e de como sua vida até hoje foi desenhada por essa amargura e desesperança. Seu objetivo é que todos nos, leitores, sejamos honestos em admitir que as falhas do sistema democrático para com os negros são muitas.
Em poucas páginas, Coates nos prende com uma análise que será para muitos um divisor de opiniões exatamente por manter que a mudança ainda não é efetiva, e que o medo e a rejeição social ainda dominam. Cruel? Em certos pontos, sim. O autor relativiza avanços feitos em muitas frentes, inclusive a que lhe dá hoje o seu espaço nos principais jornais do país. No entanto, especialmente depois do movimento Black Lives Matter , seu texto é uma faceta bem real do que ainda presenciamos em todos os lugares: entre negros e brancos, há dois pesos, e duas medidas, e essa divisão é sancionada pelo Estado. Não é desesperança ou crueldade: é a realidade.
” A escravidão não estava destinada a terminar, e é errado considerar nossa situação atual – não importa o quanto ela tenha melhorado – como a redenção da vida de pessoas que nunca pediram para si gloria póstuma e intangível de morrer por seus filhos. Nossas conquistas nunca serão uma compensação por isso. Talvez nossas conquistas nem sejam a verdadeira questão (…) Não sou um cínico. Amo você, e amo o mundo, e o amo mais a cada novo centímetro que descubro. Mas você é um menino negro, e precisa ser responsável pelo seu corpo de uma maneira que outros garotos jamais poderão entender. Na verdade, você também será responsável pelas piores ações de outros corpos negros, que, de algum modo, sempre serão atribuídas a você.”
Eu aprendi muito com a leitura, e acredito que a análise Ta-Nehesi Coates vale para o Brasil, em muitos sentidos. Na introdução do livro, escrita pelo professor de Sociologia da USP Antonio Sergio Guimarães, percebemos que entre nós o abismo é igualmente visível e injusto. A República e a abolição também não aboliram as marcas corpóreas da inferiorização citada por Coates aqui no país, e pouco se faz para mudar esse paradigma.
Um livro para pensar, refletir, e debater com os amigos. Recomendo.