Sabe aquele livro que você ama, mesmo a história não entregando tudo o que você gostaria? Lingua Nativa, de Suzette Haden Elgin, é esse livro para mim. Escrito pouco antes de “O conto da Aia” (Margaret Atwood), em 1984, ele ficou um tanto ofuscado por este contemporâneo por muito tempo. Lançado ela Editora Aleph em 2023, o livro finalmente chegou as prateleiras brasileiras e vem conquistando seu espaço.

Nessa distopia, linguagem é a chave. Em um planeta que depende do comércio interplanetário, a comunicação com raças alienígenas está inteiramente nas mãos dos profissionais de linguística, que se tornam a aristocracia do nosso planeta, em um futuro não muito distante, em 2205. Grande conservadorismo religioso parece ter tomado conta em algum momento e os direitos das mulheres foram retirados; logo, são os homens quem mandam. Na classe linguista, o mesmo acontece: homens dessa casta dominam e oprimem, as mulheres são forçadas a terem muitos filhos e filhas capazes de expandir os negócios. São horas a fio de trabalho na tradução e no estudo de línguas alienígenas, que são tão complexas e cheias de camadas, que uma criança já começa a estudá-la antes mesmo de dar seus primeiros passos, e só consegue dominar bem 1 ou duas delas.

A trama de Língua Nativa nos mostra como essas mulheres, tão valorizadas por suas habilidades e tão menosprezadas pelo seu sexo, trabalham para construir uma língua própria feminina chamada Láadan, uma linguagem represente seus anseios, seus medos, seus sonhos para as próximas gerações, tudo com intenção, propósito, e emoção. Para elas, a linguagem é capaz de construir uma nova realidade, e vai ajudá-las a alcançar um futuro menos doloroso.

Capas originais de parte da trilogia Língua Nativa – Ebay
Láadan – uma nova linguagem feminina

Essa ideia de uma nova linguagem é trazida à tona por Elgin, que tinha um PHD in Linguística, usando uma teoria (que eu desconhecia até então) chamada Hipótese Sapir-Whorf, que revela que a estrutura da realidade e as limitações de sua percepção são fortemente determinadas pela linguagem. Chamada também de “relatividade linguística”, ela já está ultrapassada no campo linguístico atualmente, mas comumente usada em livros de fantasia e ficção cientifica.

No caso de Língua Nativa, o conceito ainda era bem trabalhado e aplicado, o que faz a leitura ainda mais interessante, porque a ideia de uma linguagem, seja ela real, imaginaria/artificial capaz de transformar a cultura e a realidade, é um experimento científico muito real. A autora acreditava que a língua inglesa, como uma tecnologia ou ferramenta de poder, precisava ser desafiada, e fez isso nesse livro. Não só fez, como criou uma trilogia, na qual esperava desenvolver e poder aplicar a nova linguagem no fim.

Arte da capa do dicionário de Láadan, Union Street Press

No fim das contas, foi uma leitura incrível.


O livro é perfeito? Longe disso. A narrativa tem suas falhas e furos de continuidade, e a dualidade forçada pode incomodar, pois os homens são realmente pintados como inimigos.
No entanto, a ideia, a mensagem e o contexto fizeram muito sentido para mim. Homens cheios de húbris no poder, mulheres tentando seu espaço em condições desfavoráveis, contatos alienígenas fracassados por pura ignorância humana, o conservadorismo burro. Tudo isso me parece o resultado do que estamos vivendo nos dias de hoje, ou nos últimos tempos, se pensarmos que o livro tem 40 anos. Elgin usa seus conhecimentos de linguística e um certo deboche para contar uma história dura, que relata maneiras de como a linguagem podem nos aprisionar. Será que um dia a linguagem vai nos libertar?

Ainda que com prognósticos desfavoráveis, as protagonistas de Língua Nativa sabem da importância de seu projeto: Láadan se transforma em um instrumento de conforto, porque abraça as vivências femininas em tempos sombrios, e também de resistência, pois possui foco transformador.

O livro também tem outros focos super interessantes, como a questão da educação e exploração infantil em um mundo hostil, os conflitos de classe (linguistas x leigos), saúde feminina, dentre outros. Não deixa de ser um grande alerta, em forma de distopia, assim com fez “O conto da Aia”, cada qual à sua maneira.

Por tudo isso, é uma leitura que eu recomendo demais, especialmente para quem se identifica com o tema da linguagem.

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