Você já se pegou olhando para um retrato como esse no museu, e se perguntando quem seria, como vivia, ou o que pensava aquela pessoa?
Para a historiografia hegemônica, ela bela menina acima é somente um espécime exótico, uma gravura qualquer no museu. Tomando como foco esse exato retrato da coleção Brasiliana Iconográfica, a autora Micheliny Verunschk questiona : quem são, e como viveram as pessoas registradas nessas gravuras do Brasil Antigo? Por que sabemos mais da história de seus captores do que da delas?
Esse é o cerne de “O som do rugido da onça”. Nesse romance histórico nacional conhecemos Iñe-e e Juri, crianças indígenas raptadas, permanentemente separadas de tudo aquilo que representava sua cultura e costumes .
O destino deles? A corte de Karoline de Baden e Maximiliano I na Baviera, em 1820.
A tragédia percorre estranhos rios e mares, e tem seu ato final na Europa. Na nova cidade, assistimos ao processo de desidentidade dessas crianças, que é duro e trágico. Seus rituais e suas histórias lhes foram tomadas, e, tal como uma flor despetalada, murcharam rapidamente, sucumbindo à crueldade e às doenças dos brancos em poucas semanas.
De Iñe-e e Juri, até então, só conhecíamos seus rostos pelas gravuras de Von Martius. Tanto ele quanto Von Spix são personagens reais da nossa história, tanto quanto os cativos raptados. Parte da expedição cientifica austríaca que percorreu o Brasil em 1817, esses cientistas foram apontados como desbravadores e libertadores dessas almas selvagens do cativeiro do Brasil.
Agora, nesse livro, são as crianças indígenas que tem protagonismo. Suas vozes, suas culturas, seus olhares, tudo é que é desmerecido pelos brancos é bem captado pela narrativa, na busca de conhecer sua verdadeira essência. O apagamento da existência indígena e a imposição de uma cultura que estrangula é visível, e Micheliny deixa isso claro logo nas primeiras paginas:
Esta é a história da morte de Iñe-e. E também a história de como ela perdeu seu nome e a sua casa. E ainda a história de como permanece a vigilância. De como foi levada mar afora para uma terra de inimigos. E de como, por artes deles, perdeu e também recuperou sua voz. Preste atenção, essa voz que eu apresento agora não é a mesma voz que ecoava pela mata chamando pelos irmãos mais velhos enquanto colhia frutas para levar para a maloca. E muito menos a voz que silenciada por baixo das tempestades e dos gritos do capitão, a voz abafada por vergonha das imprecações incompreensíveis dos cientistas e, depois, contida pelos risos nervosos de cortesãos e pela impaciência. (…)
Mas não só de passado vive-se essa história.
Intercalado aos anseios das crianças na Europa, a história também nos traz ao tempo presente, onde a jovem Josefa visita uma exposição e conhece a face de Iñe-e. Tomada de um sentimento estranho de identificação, ela passa a carregar Iñe-e para onde quer que vá, e questionar sua identidade mestiça. Foi um toque que, ainda que não me tenha cativado, nos mostra como as questões de preconceito e exclusão para com os povos originais ainda é uma ferida aberta na nossa sociedade.
Em uma noite dessas, sonha consigo cindida em duas, aquela que ora se mira, adulta, parecendo prestes a descobrir algo; e outra, muito criança, chorando sentada no chão de uma sala. No sonho, toma a si mesma nos braços, e o contato das suas duas peles faz com que acorde uma terceira pele, a da vigília, arrepiada de frio. Pela primeira vez em muito tempo, deseja, então, regressar a Belém, rever a avó, conversar com ela sobre aquela difícil infância que vivera e saber por que o apagamento da herança indígena da família da mãe tinha sido necessário e tão eficaz. O porquê da família paterna, embora de pele branca, ter optado por renegar a própria condição de mestiça.
Tocante, intenso, trágico e lírico, não sei como um livro conseguiu ser tudo isso em menos de 170 paginas. Foi, para mim, uma ótima experiência de leitura. Ficou claro o esmero com a pesquisa histórica e cultural, o que elevou e muito a leitura, e foi capaz de dar voz a fatos que, hoje, vivem longe da mente, dentro de museus. Recomento muito que você conheça o livro e a escrita de Micheliny Verunschk.
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Obrigada Companhia das Letras e Netgalley pela parceria !